Na primeira noite de um cruzeiro, um grupo de pessoas de personalidades e países diferentes sentam-se à mesma mesa. Uma grande viagem, a roçar a realidade, expõe a vida e os segredos e anseios de cada elemento do grupo. Personagens interessantes – onde se inclui a visita de um corvo sábio –, e acontecimentos imprevistos, as histórias vão-se desfiando e as surpresas sucedendo: passados incomuns, confissões inesperadas, pungentes paixões, tensão dramática, desfechos surpreendentes.
«Marés de Paixão» é um romance fulgurante que nos faz apaixonar e perturbar pelos protagonistas e pelos mistérios da vida humana.
Frase final (apresentação de Sandra Santos):
Concluindo, se tivesse de caracterizar este romance, utilizando uma só frase, diria que “Marés de Paixão” é a vida a acontecer. Tal como na vida real, no decurso da leitura desta obra, conhecemos pessoas, tecemos pensamentos sobre elas, enganamo-nos a seu respeito, confirmamos suspeitas, sentimos empatia por algumas, repúdio por outras, rotulamos, estereotipamos, percebemos que não o deveríamos ter feito, somos surpreendidos pela bizarria de algumas situações, apercebemo-nos da comum naturalidade de outras... E, no fim, quando tudo aquilo que sentimos se tranquiliza, quando a diegese atinge o seu auge para depois cair nas águas calmas de um oceano em apaziguamento consigo próprio, eis que somos arrastados por uma onda severa que nos arranca a serenidade para nos colocar no rosto um esgar de espanto, uma perturbação, sem a qual a literatura, como qualquer outra arte, não atingiria o seu fim.
Adaptando as palavras de Isabelle Huppert, a propósito da sétima arte, digo eu que também a literatura existe para perturbar o espírito. Se uma obra literária não tiver a capacidade de nos perturbar, de nos fazer refletir, de promover a mudança em nós, então, não terá, na minha opinião, atingido o seu fim último. "Marés de Paixão" perturba-nos.
O advogado visitava-a quase todas as noites, com prendinhas para a agradar: uns bombons, umas bolachas, uns lápis de cor. Um dia tocou-lhe com a ponta dos dedos nos mamilos e ficou com os olhos a luzir e com o peito num grande alvoroço. Não se atreveu a mais do que isso nessa noite, olhava para a rapariga como se nunca tivesse estado com uma mulher. Ermelinda não sabia qual das atitudes era mais admirável, se o atrevimento, se a excitação do homem. Uma noite ele pediu-lhe que subisse a saia.
A exibição começou logo a seguir, com a entrada de dois guitarristas, vestidos de negro, e das bailarinas com vestidos coloridos com muitos folhos, sapatos de flamenco com tacão grosso, flores no cabelo e castanholas nas mãos. Ouviram-se sevilhanas durante hora e meia, ao som das guitarras vibrantes e das bailarinas a baterem os pés no chão e a requebrarem os quadris, com o público entusiasmado do princípio ao fim.
À saída, combinaram encontrar-se numa das nove piscinas do navio, a meio da manhã do dia seguinte.
O funerário não era casado nem nunca dividira a casa com uma mulher, na sua vida somavam-se os acasos e as incertezas. Viera da terra para o Porto ainda novo, a bem dizer nem dezasseis anos tinha. Farto dos gritos e insultos do pai, homem rude do campo, que outra coisa não fazia senão plantar batatas e apanhar carraspanas de não se pôr em pé; farto de o ver fazer festas ao cão e ao burro e de chamar puta à mãe; farto de trabalhar que nem um mouro na mercearia da aldeia; farto de ser obrigado a dar o pouco dinheiro que ganhava, o dinheiro ia direitinho para a bebida e para o tabaco do estupor; farto até de saber quem era o malandro que de vez em quando fazia desaparecer as couves dos vizinhos. E não eram só as couves, era a fruta, eram as sementes, era o que estivesse à mão. Certa vez até uma galinha desaparecera. Grande rato, o pai.
Quem era aquele homem misterioso? De que vivia e com quem? Teria alguma mulher na sua vida? Teria amigos? Teria família? Porque rangia os dentes com frequência? Não comia doces, não bebia café, pouco se envolvia com o grupo nas saídas nocturnas. Que vícios teria afinal João França?
Em tudo isto meditava, quando de repente o viu, apesar da touca que ele pusera na cabeça. Mergulhara na piscina do lado oposto em que se encontrava. Fazia 25 metros, e, ao atingir a linha de chegada, mergulhava, batia com os pés e recomeçava. A cabeça, virada para baixo, girava o suficiente para poder inspirar, e os braços, esses, movimentavam-se alternadamente em bom estilo.
É um homem desprovido de alma, admitiu Cristina, assim que João França saiu e fechou a porta. Foi como se ele lhe tivesse dado uma bofetada. Sentia humilhação e raiva. Humilhação, pois nenhum homem se atrevera a tanto. Raiva, porque não soubera reagir, na verdade nem resposta lhe dera. A última frase do estupor queimava como ferro em brasa, o selvagem não tinha coração humano! Um ordinário, não havia humilhação mais vil. Como se atrevera?! Olhou para o espelho e teve subitamente consciência de que era uns anos mais velha do que França. Andando de um lado para o outro, qual pantera encurralada, imaginava formas de o seduzir e ao mesmo tempo humilhar.
Quando finalmente a viu, corada como uma lagosta, quase em cima da hora programada para o regresso do catamarã, perguntou-lhe de chofre, num misto de preocupação e de censura:
– Aonde é que foste?
– Fui dar uma volta! – respondeu, brindando a amiga com um belo sorriso.
– A volta tem as costas largas... Disseste-me que não querias relacionamentos tão cedo.
– Eu disse isso? Talvez tenha dito... Mas não deixei de gostar de sexo!
– Só fazes disparates!
– E que sentido tem a vida se não fizermos disparates? – respondeu, sem hesitar, soltando um gritinho de prazer.
Aconteceu a meio da tarde quando se preparava para vestir o fato-de-banho e ir para a piscina. Empoleirado no mesmo sítio, com os olhos a brilharem como da primeira vez.
– Como estás, rapaz? Estás mais magro!
– Que susto! Posso saber como entrou?
– Estavas à espera que batesse à porta?
– À espera de saber o que iria acontecer… Tomei uma decisão, decidi que abandonaria o navio se o senhor Corvo, não sei se é assim que pretende ser tratado… se o senhor Corvo me aparecesse uma segunda vez. Amanhã abandono o navio – disse, tentando contrariar a liderança da ave.
– Que absurdo! Se venho visitar-te ao camarote, também posso dar um saltinho a Coimbra – respondeu o corvídeo amistosamente.
– Como é que sabe que moro em Coimbra? – perguntou Josué, sentindo-se de repente preso ao chão.
– A isso chamam vocês «meter o nariz onde não é chamado». Mas diz-me, o que faz aquele livro de corvos em cima da mesa?
...
– Quando o iam enterrar, o pai do meu pai, o meu avô, ficou com o cabelo todo branco e com a pele muito grossa. Abriu os olhos, que ficaram amarelos, levantou-se e voou desaparecendo nas nuvens, deixando um clarão também amarelo. Mais de cem pessoas assistiram ao milagre, pois dum milagre se tratou. Uma vivência fora do tempo e da morte. O pai do meu pai, o meu avô, tornou-se sobrenatural, aparece e desaparece misteriosamente. Vê tudo, nada lhe foge. Não precisa de comer nem beber, não precisa de olhos para ver. Gosta de nos visitar nos dias festivos, deixa-nos chá da cor do ouro – chá do amor e da serenidade –, e à despedida reza numa língua especial. Talvez seja a língua que se fala no céu. Um dia, ao tentar dar-lhe um abraço, percebi que ele não tinha carne nem ossos. Mas estava sentado à mesa connosco, vestido de roupa azul, como sempre.
– E porquê azul?
A alemã, a necessitar de uma dieta rigorosa, descansou a cabeça no ombro de Falcão, e curtiu o romântico bolero. O nortenho, muito bem ancorado, sentiu-se bem e confortável: a alemã tinha olhos verdes, um respeitável busto e um cheirinho muito agradável. Uma mina de ouro, carago, disse para si mesmo. Nenhum dos dois se separou quando o bolero deu lugar a uma movimentada salsa. Vendo que os pares à sua volta mudavam permanentemente de lugar e rodopiavam, num ritmo inebriante, deixou-se arrastar pela ilusão de os tentar imitar. E se de início os olhos dos curiosos, isto é, da maioria das pessoas que ali estavam, o viram saltitar numa estranha coreografia – uma dança do tipo «Meninas, vamos ao vira, ai, que o vira é coisa boa» –, o desastre acabou por acontecer: Falcão escorregou e instintivamente agarrou-se à alemã, dando origem a uma aparatosa queda. Uma queda sem consequências preocupantes, pondo de lado o facto de a germânica ter ficado por cima a rir-se. Um festival de risos da plateia fez na verdade do nortenho o homem da noite, houve até quem lhe desse palmadas nas costas e o fotografasse.
– A Magdalena estava a fazer uma massagem diferente, com óleos não sei de quê! Mas oiçam, depois das pernas começou a pisar-me as costas, a pisar-me, a pisar-me, achei que me ia partir a espinha… a sério! Não satisfeita, a maluca apitou para a segunda parte, mandou-me virar e pôs-me as mãos na barriga, pensei que me ia arrancar o fígado, os intestinos, as miudezas, sei lá… Olhem, dou graças a Deus por estar vivo.
Explodiram todos em estrondosas gargalhadas, os comensais de outras mesas riam-se também contagiados pela alegria daquele grupo. Ermelinda, com um lenço na mão, ora limpava as lágrimas, ora se agarrava à barriga, e até João França, que se mantivera calado uma boa parte do jantar, se ria sacudindo a cabeça. Um fotógrafo profissional do navio, accionava a câmara sem parar.
– A doida decidiu depois massajar-me a cabeça, por pouco não fui decapitado! Ficou a doer-me aqui, aqui e aqui! – mostrou Falcão, com um ar muito sério.
O mundo estava representado naquele navio, gente de carne e osso de todas as procedências e feitios. Conservava uma viva recordação do vasto horizonte do mar, verde e sorridente, umas vezes calmo e outras mais picado, das ondas a mordiscarem o casco do navio, dos golfinhos e cardumes em misteriosos bailados, das coreografias das gaivotas, dos passeios no enormíssimo convés, dos concertos, dos tangos de Gardel, da chegada e partida em vários países, das cidades que conhecera, dos monumentos e das fachadas das igrejas, dos museus e dos palácios de todos os estilos e de todos os tempos. Mar, céu e terra, viajantes de tudo o que é mundo, caucasianos e negros, amarelos e vermelhos, altos e baixos, jovens e idosos, remediados e endinheirados, crentes e ateus, anões e gigantes, carecas e gadelhudos, conservadores e aventureiros, humildes e fanfarrões, cada qual com a sua história de vida, com as suas convicções e perspectivas, temores e destemores, venturas e enfados, fracassos e sucessos.
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