As velas ardem até ao fim - um dos romances mais admirados e emblemáticos de Sándor Márai - é uma obra que nos prende desde a primeira página e que nos obriga a frequentes e profundas reflexões. Magia literária em redor de um sentimento forte que se chama amizade própria. Um romance que nos faz pensar sobre o valor da amizade. As velas ardem até ao fim, uma relíquia para ler e reler.
Ler mais: https://www.portaldaliteratura.com/livros.php?livro=7906
Temos de suportar que os nossos desejos não tenham plena repercussão no mundo. Temos de suportar que as pessoas que amamos, não nos amem, ou que não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, e o que é o mais difícil entre todas as tarefas humanas, temos de suportar a superioridade moral ou intelectual de uma outra pessoa. Foi isso que aprendi durante setenta e três anos aqui, no meio da floresta. Mas tu não conseguiste suportar tudo isso — diz em voz baixa e firme. Fica calado, olha para a escuridão com olhos de míope, — Naturalmente, na nossa infância ainda não sabias tudo isso — continua depois, como quem procura desculpa. Era um período belo, uma época mágica. A memória da velhice aumenta e mostra cada pormenor com desenho nítido. Éramos crianças e éramos amigos: isso é uma grande dádiva, devemos agradecer ao destino por tê-la desfrutado. Mas depois formou-se o teu carácter e não foste capaz de suportar que te faltasse algo que a mim foi dado, graças às minhas origens, à minha educação, uma espécie de dom divino... Qual era essa habilidade? Tratava-se de habilidade? Era simplesmente que o mundo olhava para ti com indiferença, às vezes com hostilidade, mas a mim, as pessoas ofereciam sorrisos e confiança. Tu desprezavas essa confiança e amizade que o mundo me proporcionava, desprezavas e, ao mesmo tempo, estavas a morrer de ciúmes. Provavelmente imaginavas — não de uma maneira explícita, naturalmente, mas através de sentimentos obscuros, que uma pessoa que é amada e amimada pelo mundo, tivesse algo de prostituta. Há pessoas de quem toda a gente gosta, para quem todos reservam um sorriso benévolo e carinhoso, e essas pessoas realmente têm algo de vanglorioso, algo de prostituta. Como vês, já não tenho medo das palavras — diz e sorri, como se quisesse encorajar o outro a não ter também medo. — Na solidão, uma pessoa chega a conhecer tudo e já não tem medo de nada. As pessoas, em cuja testa se reflecte o sinal divino que mostra que são protegidas pelos deuses, sentem-se realmente seres escolhidos e, na maneira como se apresentam perante o mundo, há uma certa segurança vaidosa. Mas se tu me vias assim, estavas enganado. Apenas os ciúmes podiam distorcer a minha imagem dessa maneira. Não se trata de me defender, porque quero saber a verdade, e quem procura a verdade, só pode começar a busca dentro de si.