Ti Dália
Ti Dália
Quando eu era menininho, há umas décadas bem sei, conheci uma velhota especial, tão especial que ainda me visita quando ando à procura de mim próprio. Era alta, delgada, decidida, imaculadamente misteriosa. O cabelo branco chegava-lhe aos ombros e os olhos expressivos, mais verdes do que castanhos, pareciam tudo enxergar. Chamava-se Maria Cidália, mas toda a gente a tratava por Ti Dália. Tinha a força e a coragem de um touro, a inteligência de uma sábia, embora não conhecesse as letras nem os números. Era aquilo que se costuma designar por “força da natureza”. Levantava-se quando o galo cantava, deitava-se noite cerrada. Entre o levantar e o deitar, limpava a casa, lavava a roupa no tanque, pastoreava as ovelhas, mondava a horta, e ainda arranjava tempo para rezas e mezinhas. Mezinhas para a gripe, para a tosse, para a azia, para problemas de pele, para a gota, para as lombrigas, para tirar os sinais das bexigas, para as hemorroidas e até mesmo para as pessoas que iam perdendo o juízo! Receitas milagrosas, a fazer fé nas curas.
Como se não bastasse, fazia de parteira quando era necessário. Dizia-se que até a uma vaca ajudara a parir numa situação delicada. Dizia-se, embora eu nunca tivesse visto a não ser com os cães e as galinhas e os coelhos, que falava com os animais. Dizia-se que chamava os espíritos para a ajudarem e que os afugentava se fossem perversos. Dizia-se tudo isto e muito mais…
Costumes peculiares, lá isso tinha, por vezes (embora raras) saía montada numa mula em direcção ao rio e só regressava à noite, quando o céu se pintava de negro. Lembro-me de lhe dizer uma vez que estava com fome... «Quereis ver? Fome? Apetite, isso sim, fome é estar três dias sem comer», palavras que recordo e que me escapam dos lábios de quando em vez. Como me lembro também de ela dizer «lá vou eu trabalhar a terra para amansar a cabeça».
Num dia de chuvisco fino, Ti Dália agarrou nas suas bugigangas e foi-se embora sem olhar para trás, nunca mais ninguém a viu. Chorei ao vê-la partir… Talvez se tenha fundido com a serra que fica nos arrabaldes da vila, ou se tenha feito vento que se vai espalhando, ou escondido nas profundezas do rio, ou ainda, quem sabe, esteja a sorrir-nos do mais alto dos Céus.
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