O Tibúrcio

Chama-se Tibúrcio, um nome invulgar, mas podia chamar-se Mascarenhas, Soares, Zeferino, ou simplesmente Bernardo, que ia dar ao mesmo. Não é fácil caracterizá-lo fisicamente: não é alto nem é baixo, não é gordo nem é magro, tem os olhos ligeiramente encovados e um ar entre o murcho e o sério. É daquelas pessoas em que ninguém repara.

 

Trabalhou quinze anos como contabilista numa empresa de Auditoria e Contabilidade: lambendo papel de todas as cores e tamanhos, atribuindo códigos, registando operações no deve e no haver, conferindo números, processando salários, nome a nome, conta a conta. Era um homem às direitas, o Tibúrcio, sempre aprumadinho e de gravata ao peito, como o patrão gostava que ele andasse. Nem aos fins-de-semana a tirava, não fosse cruzar-se com o Manda-chuva! Trabalhou sempre como um mouro, pegava às oito horas e nunca saía antes das vinte e uma. Nos fechos de trimestre até aos sábados e domingos trabalhava. O patrão fitava-o por cima dos óculos e perguntava: «Ó Tibúrcio, já fechaste o IVA?... Ó Tibúrcio, onde está o raio do balancete que te pedi? Ó Tibúrcio, estás à espera de quê para telefonar aos clientes que ainda não pagaram? E o Tibúrcio punha mãos à obra e processava tudo com uma eficiência que fazia lembrar um robot.

 

Quando eu o convidava para ir à praia ou ao cinema, ou para uma simples jogatana, dizia-me sempre que não podia. Foi-se tornando escravo do trabalho e escravo do dinheiro. Passeava sozinho, ao domingo, como se fosse o cão de si mesmo.

 

Um dia teve um acidente de viação e ficou uma semana em coma e três meses para se recompor. Teve algumas visitas, poucas, mas nunca a do patrão. Quando por fim teve alta, já o lugar fora ocupado por outro. E como um mal nunca vem só, umas semanas depois perdeu a mulher que por outro se apaixonou.

 

Andou um pouco deprimido, o meu amigo Tibúrcio, um dia disse-me que ia de férias por dois ou três meses. Sem rumo, garantiu. Foi até ao sul de Espanha e entrou em África, atravessou Marrocos e foi até à Tunísia. Quando o voltei a ver não o reconheci: tinha barba e andava com o cabelo puxado e preso atrás das orelhas. Agora já não é branco nem pálido, veio moreno, quase tisnado.

 

Quando me vê convida-me sempre para beber um café. Está mais expansivo, vê-se claramente que ganhou alma. Anda a convencer-me a fazer capoeira às terças e quintas, mas também se meteu a aprender tango, aos domingos, com uma rapariga por quem se enrabichou. Mas não é tudo, registou-se como empresário em nome individual e começou a fazer a escrita para alguns clientes. «Começo às nove horas e largo às dezoito», diz, «nem para mim volto a ser escravo», garante. 

 

«Abençoado acidente», disse-lhe eu há dias, «ainda bem que o iluminado do teu patrão te despediu.» Sorriu até às orelhas, como eu nunca o tinha visto sorrir, e deu-me um abraço. Olho para o meu amigo Tibúrcio e percebo que já não é o mesmo, apenas o nome se mantém.  

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