O nada

Acontece-me escrever quando me distraio ou quando me foge o sono. À luz de uma vela e vendo a madrugada a passar. Quando a sopa está quente também escrevo, assopro e as letras caem no papel. Não sei bem porque escrevo, mas há doidices piores. Na escuridão do meu quarto penso, desarrumo o passado e dou conta, numa ordem cronológica invertida, do verbo que já fui: corri, joguei, subi às árvores, brinquei em vários jardins, plantei, tropecei em alguns lugares, lutei com monstros e fantasmas, admirei vários céus, roubei o que podia ser roubado, fiz coisas incontáveis.
Hoje ocorre-me a certeza do nada. O nada é quase sempre divertido, conheci-o numa tarde de Inverno na avenida das Descobertas. Um rosto e um corpo belos mas invisíveis. O mesmo posso dizer dos olhos, penetrantes mas indecifráveis, e dos cabelos, lindos mas de uma cor que não consigo descrever. Inteligentíssimo, o nada, lá isso era. Era e continua a ser provavelmente. Ficamos a palestrar num silêncio profundo. A certa altura deixou um pião a rodar e desapareceu oculto no arvoredo. Esfumou-se, durante uns tempos deixei de lhe pôr os olhos em cima… Voltei a vê-lo num dia em que choviam flores do céu (flores de todos os tipos, cores e tamanhos); mais tarde, numa noite quente de Verão, passou por mim como se fosse um pirilampo; outra vez, numa altura em que eu carregava uma dúvida existencial, bateu-me na nuca e a seguir torceu-me o nariz e foi-se embora (a bem dizer, apagou-se, como se de uma luz se tratasse); semanas mais tarde acordei com o nada a perguntar-me ao ouvido: O que fazes do tempo?
Não voltei a vê-lo, mas nunca me esqueci da pergunta. O pião, esse, nunca mais deixou de rodar.

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