Guerra na paz (um conto em tempos de pandemia)
Guerra na paz
Nem com analgésicos as dores lhe passavam, o problema só se resolvia indo ao dentista. Saiu de casa com máscara facial cirúrgica, óculos de protecção, chapéu e luvas. Num saquinho de plástico levava também uma viseira.
O ar primaveril, doce e fresco, contrastava com a preocupação de João, era a primeira vez que saía depois de quase dois meses de confinamento. Entrou na clínica hesitante, passou como vento pela recepção, e foi directo para a sala de espera.
– Bom dia – cumprimentou, inquieto.
– Bom dia – respondeu sorrindo a única paciente na sala.
Sentando-se a larga distância, João olhou para a rapariga. A máscara não lhe tapava o belo rosto, nem os olhos cor de mel, nem o cabelo loiro, nem a curva dos seios. A muita roupa e apetrechos que João exibia naquele momento, não o impediram de sentir-se nu diante dela!
– O que nos havia de acontecer, vir ao dentista de urgência! – disse ele, metendo conversa.
– Só venho fazer a limpeza aos dentes – disse Helena, retirando a máscara e mostrando os alvíssimos dentes ao sorrir.
João puxou a cadeira para trás e cruzou os braços, pensando no covid-19. Que ligeireza, pensou, passando a descrever-lhe a ameaça que sobre eles pairava. Palavra puxa palavra, Helena afirmou detestar a máscara.
– Uso-a em sítios como este, por respeito às autoridades… Felizmente está tudo a correr bem, não tarda ninguém a usa!
– Pois eu acho que não, o pior está para vir. Nem em casa a tiro, é muito mais seguro.
– Com quantas pessoas mora?
– Moro sozinho – mentiu João, bem casado e com um filho de sete anos.
– Se mora sozinho, não faz sentido usar máscara – retorquiu Helena docilmente.
João não se conteve, palestrou sobre pandemias, de todas sabia bastante, Peste do Egipto, Cipriano, Justiniano, Peste Negra, Gripe Russa, mais tarde a Espanhola, deambulou entre morcegos e pangolins, vacas e macacos, vespas e mosquitos, álcool e desinfectantes, sabão e lixívia, termómetros e cógulas e toucas, lubrificantes para os lábios, luvas e manguitos.
– Manguitos? – perguntou Helena largando uma gargalhada, enquanto se levantava.
João, que não a ouvia com os ouvidos mas com os olhos nas pernas dela, continuou a dissertar, ora dizendo que tomava quatro banhos por dia, ora que lavava a roupa a 90 graus, ora que não abria a janela não fosse um covid entrar.
– Não sei porque te ris... Devo dizer que não sou de atirar a toalha ao chão.
– Claro que não – respondeu ela sorrindo.
– Vamos ver o que acontece daqui a um mês...
– Daqui a um mês já nem máscaras usamos.
– Qual quê, aposto mais num segundo confinamento, vai ser uma tragédia.
A recepcionista mandou entrar Helena. João ficou a olhar, além de gira e elegante era charmosa, pena estar a suicidar-se levianamente.
A dor de dentes diminuíra, passou pela recepção a anular a consulta, desceu 11 andares pelas escadas, meteu-se no carro e lavou-se com uma mão cheia de gel. A meio do caminho para casa começou a sentir uns leves mas estranhos arrepios, correu a medir a temperatura assim que entrou.
20/05/2020
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