Autobiografia possível

No dia em que me cortaram o cordão umbilical, lembro-me bem, berrei tanto que pus a Maternidade Alfredo da Costa em alvoroço. Puseram-me na rua nesse mesmo dia, fazia um frio dos diabos. Comecei logo a mamar, gostei tanto que era de manhã à noite, não fui na conversa da chucha.
Aos dez meses empinei-me para a frente e comecei a andar. Umas semanas depois bati com a cabeça na mesa e arranjei uma encrenca com o meu senhorio, coitado, ainda estava a pagar a mobília. Por essas e por outras fui para o norte de Moçambique, para uma terra onde se estrelavam ovos ao sol. Quando uns anos mais tarde viajei para Angola, já ia um pouco torrado das ideias. Pensando bem, o resto da minha infância foi tranquila, muito embora tenha partido uma perna ao cair de uma falésia atrás de um gafanhoto, mordido a professora no primeiro dia de aulas (não voltou a puxar-me as orelhas), padecido de lombrigas, atropelado uma vizinha a conduzir uma motorizada gamada por um colega mais velho, mordido por um cão não vacinado, preso pela PIDE por estar a fazer pé-coxinho com a perna esquerda, se a memória não me falha. Como era menino só me deram umas palmadas. Para alguns vizinhos eu era um diabinho, para outros um diabo, para outros um diabão, prova provada, passe o pleonasmo, que era rebelde e criativo.
Comecei a delinear o meu plano de vida na adolescência, rua acima, rua abaixo, com umas calças boca de sino, uma camisa mil flores e uns óculos catitas. A moda na altura. Pensei ser actor de cinema ou de teatro, mas não tinha jeito, nem para moço de recados me quiseram. Uma frustração. Pensei ser um cantor famoso, dei conta que cantava como um vitelo bravo, fora do tempo e, pior ainda, lançava enormes perdigotos. Um desastre. Pensei ser pugilista, tinha sangue na guelra… Ao primeiro combate uma direita mal-amanhada mas escrabosa tirou-me dois dentes, ainda tenho o som nos ouvidos e a dor nos neurónios. Reagi dando-lhe um valente pontapé nos berlindes e arrumei com ele. Fui desclassificado, até nos jornais saiu, nem a Padeira de Aljubarrota foi tão falada como eu. Um drama. Pensei continuar a carreira de pugilista, mas perder dois dentes por combate não augurava nada de bom, confesso que tive receio de ficar desdentado. Diz quem viu, e muita gente foi, que tinha uma destreza de pernas extraordinária. Uma espécie de canguru com duas pernas. A sério. Comecei por isso a jogar futebol, caso não encontrem outros méritos na minha vida, ninguém me tira ter sido campeão nacional em juvenis e juniores, numa equipa que não revelo por respeito ao meu clube do coração.
Numa altura em que já aparava o bigode (um bigodinho jeitoso por sinal) fui fazer Economia para me divertir, embora me tenha divertido também a fazer outras coisas: um filho, bem feitinho e lindo como os passarinhos; grandes pescarias, por pouco não fui devorado por um tubarão; algum xadrez pelo meio, tive mesmo de me empenhar a fundo com os bispos, brancos e pretos, e com os cavalos, pretos e brancos, a certa altura comecei a ficar caquéctico e sonâmbulo, saía de madrugada à procura da rainha, à luz das estrelas… Que valeu a pena, lá isso valeu, conquistei algumas medalhas, um amigo de um amigo meu queria que eu defrontasse o Bobby Fischer mas o americano nunca se atreveu.
Transcorridos alguns anos, estava eu numa praia de areia fina de papo para o ar, com a luz do sol a penetrar na minha moleirinha, quando de repente ouvi a desfolhada portuguesa, «Eira de milho, luar de Agosto, quem faz um filho, fá-lo por gosto». Entusiasmado, mandei vir uma menina, chegou nove meses depois, linda como os amores.
Seguiu-se um período profissionalmente exigente em duas multinacionais francesas (uma delas um Estado dentro do Estado), fiquei com um parlapiê escanifobético muito interessante e cheio de pastas; saí da empresa quando soube que me iam nomear administrador de uma tribo de canibais.
A segunda parte da minha vida começou uns largos anos mais tarde, numa noite em que as estrelas promoviam um baile no céu, uma história que começou com uma mordidela de uma osga de uma espécie da Nova Caledónia. Uma osga com olhos de esmeralda. A osga era belíssima, olhos de esmeralda grandes, patas grandes, língua grande. Apareceu sem ser convidada, numa noite com muita chuva. Tratei de a perseguir para lhe cortar o rabo, mas ela mordeu-me e fugiu. Berrei que me fartei. De osgas pouco sei, não consegui pô-la na rua, dei mesmo cabo de algumas telhas do meu telhado. Acordava a meio da noite e dava com ela a gozar-me empoleirada num candeeiro, comecei a ter insónias, primeiro, pesadelos e alucinações, depois. O pior aconteceu duas semanas mais tarde, na madrugada de uma sexta-feira, a osga apanhou-me de boca aberta e instalou-se na minha traqueia. Andava doida de baixo para cima e de cima para baixo. Fiquei com pele de galinha, pálido como um fantasma, entrei em coma quando ela me chegou ao coração. Um acontecimento sem explicação científica, bem sei.
Ressuscitei três meses depois com todos os mistérios da vida na minha cabeça. Latejavam. Acordei para desafiar o oceano que se levantava à frente de mim. Dei conta que era mais belo do que eu pensava, deixei-me embalar com as águas tépidas, com as vozes do mar, com as sereias coloridas. Uma delas sentou-se no meu colo e comeu-me a língua; outra, linda como os malmequeres, levou-me uma perna, à laia de presunto; uma terceira, mais formosa do que a lua, roubou-me o coração enquanto eu dormia. A todas amei, a todas devo o que sou. Um dia, inesperadamente, nasceu-me a vontade de escrever um romance. Uma vontade insaciável, um delírio, escrevi tanto que me ficou a doer a mão. «Marcas de Amor», uma grande paixão com o seu quê de mistério, foi o primeiro, serviu para destruir o meu palácio, o palácio onde eu guardava as minhas utopias, o pior foi o que aconteceu à maioria dos meus amigos e leitores: ora me apareciam moídos de tanto rir, ora surgiam com os olhos vermelhos de tanto chorar.
O tempo foi andando, comendo o que se tem para comer. Numa noite escuríssima como breu, acordei a sonhar com uma flausina, de feições perfeitíssimas, a ensinar-me a cozinhar mexilhões. Confesso que fiquei com os mexilhões na cachimónia, embora não me tivesse esquecido da flausina… Uma terrível insónia fez-me cismar num malandreco, que mal sabia contar até três, preso por roubar uma rica sandes de presunto, e numa distinta figura pública, doutorada em Economia e conhecida pelas suas citações de Churchill, acusada do desvio de uns milhões. Inocente até prova em contrário. Vai daí escrevi «Caídos da Mesma Árvore», uma história que mete medo ao susto, ao pavor, ao terror, uma ficção que mostra a mente pecaminosa que tenho. Devo ter aguçado a curiosidade de amigos e leitores, muitos e muitos foram os que me perguntaram o que tinha afinal acontecido ao Honório. Morrido afogado ou fugido? Aos que não respondi na altura respondo hoje: a árvore de que falava é um jacarandá, bem drenado, com flores roxas e azuis. Olhando com atenção, porém, vemos flores brancas e negras, amarelas e vermelhas, todas com a mesma seiva, com o mesmo sangue, embora haja quem pense o contrário. E acrescento: há um Honório dentro de mim, talvez haja um Honório dentro de cada um de nós.
Mais tarde, numa noite em que as estrelas pareciam pedaços de prata, fui abordado por um extraterrestre que me disse que o mundo, ou quem manda nele, entrou na era da loucura total: carros que voam, homens que engravidam, galos que tocam piano, sexo artificial, travesseiros que falam, robôs com emoções, bebés por encomenda, e por aí adiante. Foi também isso que me fez escrever «A Valsa dos Pecados», romance lançado no Padrão dos Descobrimentos. No meio de um magote de gente ilustre, não posso deixar de mencionar a presença de Vasco da Gama e de Pedro Álvares Cabral. Afonso de Albuquerque, com um súbito problema na tripa, pálido como o leite, coitado, não pôde comparecer. Apresentou o meu livro Sua Majestade D. Manuel I que, abdicando do aconchego do palácio, marcou presença no Padrão dos Descobrimentos. Um facto histórico… Agarrou no meu livro, com pompa e fantasia, e dançou uma valsa com uma eloquência irresistível. De tal forma se entusiasmou que deixou cair a coroa, levantei-me e corri a apanhá-la, ainda hoje a sinto nas mãos. Tentei agradecer com palavras finas e um sorriso do céu, mas foi um desastre: um ataque de gaguez intercalado com soluços nervosos, calafrios, tremedeira no olho esquerdo. Numa palavra, fiquei apalermado, algo que me acontece com alguma frequência e que já não tem tratamento. Sua Majestade achou muita piada felizmente, riu-se com gosto, provando o bom humor dos reis portugueses. Esticou depois a mão para lhe darem beijocas e fez algumas selfies, poucas, é público que sofre de bicos de papagaio. Telefonou-me no dia seguinte, confidenciando-me ter lido o meu romance naquela mesma noite. «Nem aos aposentos da rainha eu fui», disse-me Sua Majestade, largando uma contagiante gargalhada. Exigiu-me que escrevesse um livro por ele. Pensei em escrever «A Valsa das Virtudes», mas estou com sérias dificuldades… O problema é que na minha cabeça, embora eu seja católico e de moral cristã, estão sempre a borbulhar patifarias!


P.S. – Daqui a umas décadas, antes dos meus cem anos certamente, escreverei a terceira parte da minha autobiografia.

Nov. 2018

#Autobiografia 

 

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