O fulanão
O fulanão, do tamanho de uma casa de dois andares, e com uma barba que lhe chegava ao peito, levantou-me pelos fundilhos das calças e gritou-me dizendo que eu escrevia pior do que o mais retardado dos orangotangos. Chamou-me aprendiz de escrivão, doido varrido, safado e libertino, filho de uma égua (na verdade foi outro nome que não me atrevo a escrever), e terminou dizendo que nem para lavar pratos de alumínio eu servia. Quando muito engraxar sapatos na Rua da Prata, rosnou. Rasgou «A Valsa dos Pecados», fez ecoar uma trombeta e desapareceu em menos de um fósforo. Mordido por tão graves insultos, desta recente mas verídica história, perdi o pio durante dois dias, se não foram três. Mas hoje decidi fazer o contraditório e enviar-lhe um e-mail com as últimas críticas/comentários que fizeram no meu site. Leiam, se tiverem paciência, que é coisa que me vem falhando:
Alina Timóteo em 2017-07-10 11:47:30
Carlos Porfírio guia-nos, através do narrador, por um salão colorido e variado chamado vida. A cada passo ternário, um novo acontecimento que marca a vida desta personagem é-nos apresentado, e passamos a vivê-lo através dos seus olhos. Tanto nos sentimos a girar maravilhosamente pelas zonas mais iluminadas como tememos - e quase falhamos o passo nessas alturas - os cantos escuros do salão.
Confesso que o início da obra me deixou momentaneamente confusa, com duas situações (de planos temporais diferentes) a serem relatadas em simultâneo. Para acrescentar à confusão, deu-me a sensação de que o narrador passava de uma situação má (estigmatizado por estar envolvido num crime que nada teve a ver com ele) para outra pior (viver como soldado em plena guerra colonial) - tudo de uma maneira que na altura me pareceu meia súbita. Mas embora pareça que alguns detalhes não voltarão a ser relevantes, eis que surgem quando menos se espera. Quando damos por ela, já demos um mergulho sem retorno.
Tendo alguns elementos que aludem a obras como \\"O Retrato de Dorian Gray\\", \\"O Deus das Moscas\\" e \\"A Queda de um Anjo\\", assistimos ao declínio de uma personagem à medida que é \\'exposto aos elementos\\' de uma sociedade que «tanto tinha de conservadorismo como de hipocrisia», fruto da sua época. Este tema da hipocrisia é uma constante palpável em toda a obra, e o que inicialmente revolta o narrador também a nós nos afeta, contribuindo para criar um laço entre o leitor e a personagem (que vai propositadamente enferrujando ao longo do percurso).
De pecados veniais a mortais, o narrador vai cometendo uns atrás dos outros, tanto por ser vítima das circunstâncias, como por ser o resultado do espartilhamento auto-imposto da sua própria mente. Da aversão ao poder e à hipocrisia adjacente, torna-se precisamente no que desprezava inicialmente por necessidade (busca de liberdade ), mas depois por pura avareza.
Enquanto testemunhamos a sua vida, somos confrontados de maneira não intrusiva a outro tipo de dilemas: repressão, as duas caras do poder político e respetivas consequências no campo de batalha, a robotização das pessoas visando o progresso (e perceber que o progresso, por sua vez, «tanto pode favorecer a liberdade como servir para nos acorrentar»), e - a que por fim mais nos atinge - a dura e amarga perceção tardia (e constante) de que o tempo perdido não volta.
O tom da narrativa muda conforme os anos passam, o que se torna algo delicioso de se ler para quem estiver atento. Mesmo que não houvesse pistas sobre a evolução da idade do narrador (que as há), poderíamos percebê-lo simplesmente ao prestar atenção nas nuances do discurso utilizado, desde o tom sonhador e entusiasmado que associamos à juventude, à arrogância do pico da vida, à impaciência (q.b.) vivida da meia idade, e às repetições (muitas vezes saudosas), casmurrices naturais e doenças incapacitantes recorrentes na velhice... especialmente uma velhice assombrada pelo peso sempre crescente de um tremendo arrependimento.
Uma obra que nos faz recordar, através das falhas tão humanas do narrador, do que realmente vale a pena viver neste grão de poeira cósmica.
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